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A plenitude da infância – {por Amanda Hipólito para a Blogagem Coletiva 2013}

Diferente do que muita gente pensa, quando meus pais se separaram, eu com sete anos de idade, não sofri pela separação deles, muito pelo contrário, senti um alívio, pois ficamos todos livres daquele ambiente pesado de brigas e mais brigas.

 

O sofrimento foi ter que me mudar da rua onde morávamos, pois lá, mais do que em casa, a infância era vivida plenamente! A rua era das crianças, por isso a chamávamos de “Nossa Rua”, durante muitos anos eu sofri com esta perda, foi um pouco como a perda da infância… Sabe porque? Deixa eu explicar melhor: lá, na “Nossa Rua”, as crianças ficavam soltas e livres, sem a constante presença recriminadora dos adultos, naquela época eu não sabia porque, mas os adultos estavam sempre em suas casas ou trabalhos, mas raramente na rua, esta era unicamente das crianças, e ali vivíamos num mundo próprio.

 

Localizada em Santa Teresa, um bairro conhecidamente bucólico por suas ruas de paralelepípedo, casas antigas e bonde circulando nos trilhos; a “Nossa Rua”, uma rua sem saída, e com isso sem transito de carros, naquela época tinha em boa parte de sua extensão um “morro de terra” que separava as duas calçadas em desnível, e por isso até mesmo estacionar não era possível em boa parte dela. Não haviam prédios de apartamentos, somente casas simples com quintal, jardim ou uma boa varanda, mas mesmo assim ficávamos muito mais na rua do que em nossas casas. Das famílias que moravam nesta rua, 90 % tinham pelo menos uma criança, duas ou três, o que tornava nosso social na rua muito rico, éramos muitas crianças de diferentes idades, meninos e meninas, e também com diferentes níveis sócio-culturais, mas na Nossa Rua todas as crianças brincavam juntas.

 

Brincávamos de pique-pega, pique-esconde, pique-alto, pique-bandeira, pique-baleia… a infância sadia tem pique pra tudo! Brincávamos de campeonato de corrida, de quem pula mais alto, de cuspe à distância, de melhor dupla teatral, ou de melhor dupla de lambada… Telefone-sem-fio, mês, adedanha, adoleta, gato-mia, mímica… Não cansávamos de subir em árvores, de escorregar no morro sentados no papelão (e ficar com o bumbum todo sujo de terra), de jogar queimada, de tomar banho de chuva e pular em poças de lama, de ensaiar espetáculos de dança em cima da caminhonete, de pular corda, pular elástico, amarelinha, soltar pipa, jogar bolinha de gude, comer goiaba no pé da vizinha, comprar sacolé na outra, fazer o enterro da cigarra que morreu depois de a encontrarmos caída perdendo aos poucos sua voz rouca… Ficávamos horas, às vezes dias, ensaiando peças teatrais que depois convocávamos os pais pra assistirem pagando ingresso. E à noite era maravilhoso contar e ouvir piadas, contar e ouvir histórias mal assombradas, brincar de salada-mista…

 

Tinha o namoro ingênuo, de mãos dadas, e bochechas queimando de vergonha; tinha o namoro tímido, que acontecia escondido com apenas um estalinho, e tamanho era o palpitar e rubor causado por esta façanha, que cada qual corria pra lados opostos em seguida do beijo; tinha o namoro escondido, em que a maior aventura, era justamente o segredo em si, e encontrar formas de como manter este segredo em disfarce, mesmo que nada acontecesse entre eles, uma espécie de detetive às avessas; tinha o namoro que não existia mas que todas as crianças da rua vibravam juntos querendo que tal casal se namorasse; tinham os amores platônicos, esses tinham aos montes… Namorar era apenas enfrentar o encontro de sentimentos entre um menino e uma menina, a primeira experiência de amor entre esses opostos.

 

Haviam algumas rixas temporárias, mais no geral havia uma união indescritível! Tínhamos uma alma de grupo, o mesmo time de futebol, a mesma escola de samba e até mesmo o mesmo partido político, mesmo que alguns não seguissem o que seus pais eram. Por exemplo, todos os pais não torciam para o mesmo time de futebol, mas sempre tinha aquele pai que era o mais fanático de todos por futebol, e isso dava uma certeza pras crianças de que o seu time devia ser o melhor. Pras questões políticas também tinha todo tipo de pais, mas nesse caso, os mais politizados, conscientes e revoltados com a realidade atual se destacavam pra nós crianças, e mesmo sem entender nada de política éramos todas de esquerda, e chegamos a fazer cartazes e sair em passeata mirim pelas ruas do bairro em época de eleição, sem a menor interferência dos adultos, criamos tudo sozinhos.

 

Desta união também nunca vou me esquecer de uma vez que perdi minha irmã que tinha 2 anos (e eu 6) e estava sob meus cuidados, comecei a chorar copiosamente com medo de voltar pra casa sem ela, com medo da reação do meu pai, e todas as crianças se revezaram entre me consolar e procurar a minha irmãzinha pelas casas vizinhas, antes de eu voltar à minha casa. Até que as crianças encontram ela na última casa visitada da rua. A mãe do Jorginho havia passado enquanto brincávamos de pique-esconde e não conseguiu se segurar com tamanha fofura da pequena, convidou-a pra ir em sua casa comer alguma besteirinha qualquer, mas como estávamos todos ocupados com o pique nem percebemos. Todos vibramos juntos pelo resgate, pelo reencontro, e aquilo aumentou em grandes proporções o amor fraterno entre nós, crianças da rua. A partir dali “minha” irmã passou a ser a “nossa” irmãzinha caçula, todas as crianças agora eram uma só família de irmãos, quando estávamos na rua.

 

Ah, e como era maravilhoso poder andar em bando pelas ruas do bairro! Principalmente em dia de Cosme e Damião, era certo que faltaríamos a escola, na época isso ainda não era proibido pela maioria dos pais, certamente as escolas estariam esvaziadas neste dia… pois era uma espécie de sacramento da infância! Passávamos o dia inteiro enfrentando filas e mais filas, de uma casa à outra pra conseguir o bendito saquinho de doces, um exercício de persistência e de força de vontade, pra conseguir o que queríamos, e depois que estávamos com dois sacos de supermercado cheios de saquinhos de doce, íamos em casa, deixávamos os sacos e voltávamos para a peregrinação em busca dos doces. Depois tínhamos doce pra mais de um mês, mas logo enjoávamos e por um bom tempo não queríamos ver doce pela frente.

 

Lembro-me também de uma vez que apareceu uma coruja com a asa machucada no quintal de minha casa, meu pai a trouxe pra dentro de casa, pra cuidarmos dela, fez um puleiro pra ela, e durante alguns dias tivemos que ficar com portas e janelas fechadas, luzes apagadas e falar cochichando pra não assustá-la. Isso virou a grande sensação da rua, e pelo menos uma vez ao dia tinha visitação guiada à coruja em minha casa. Depois que ela ficou curada nós a levamos pra rua e a soltamos. Foi magnífico ver esse vôo de liberdade e vibrar todas as crianças juntas! Mas mais magnífico ainda, foi quando num domingo em que eu estava tomando um café da manhã tardio de com meus pais, escutei o grito de várias crianças me chamando na Nossa Rua : – Amandaaaaa, vem ver quem venho te visitaaaar!!! – E quando apareci na varanda, lá estava minha coruja num galho da àrvore que ficava na Nossa Rua enfrente a minha casa. Era inacreditável, mas todos tínhamos certeza: Ela viera agradecer pelos cuidados e matar a saudade!

 

Tínhamos televisão, acho que todas as casas tinham, mas isso não competia com a vida pulsante que corria lá fora, na Nossa Rua. E mesmo em dias chuvosos a farra era revezada entre as casas das crianças, onde brincávamos de boneca, de comidinha, de cabaninha, amarrando lençóis por toda a casa e inventando viagens fantásticas ao mundo da imaginação… ou então dáva-se vazão às artes, desenhando, pintando, dançando e cantando ao som de saltimbancos em discos de vinil, costurando roupinhas de boneca, ou escrevendo cartas de amor que eram colocadas na caixa de correios do vizinho pelo carteiro, que fazia isso pra gente sem cobrar nada, pra que não fosse descoberta a autora anônima… Nessa infância não me lembro de ter cruzado com o tédio, não tínhamos muito tempo pra ele, mas quando ele dava algum sinal, sabía-se: algo novo estava para nascer… era latente… e uma nova invenção era criada a partir de nossa fértil imaginação!

 

Já em dias de calor escaldante, banho de mangueira era a nossa alegria maior, parecia que virávamos verdadeiros curumins no encontro com as águas, pois muitas vezes acontecia com todo mundo pelado, o que nos permitia ver os corpos de forma natural, e ser crianças nuas de pudor!

 

Lembro-me do jardim da Dona Idazina, era o mais lindo jardim da Nossa Rua, um verdadeiro jardim encantado, que ao atravessar o seu portal de entrada sentíamos estarmos adentrando no mundo onírico dos contos de fadas. Era um jardim muito bem cuidado, com plantas enormes, entre as quais tinha uns caminhos que, pra nós crianças, eram quase labirínticos. Lá tinha uma pedra enorme com formato de um rosto, que pra conseguir levanta-lá era preciso duas crianças. Fizemos um buraco na terra e usávamos a pedra-rosto pra vedar este buraco, e nele guardávamos moedas e tesouros, tínhamos a impressão de que a pedra era nossa guardiã encantada, e sempre antes de movê-la pedíamos licença. Também neste mesmo jardim vivia uma árvore enorme e velha, com a qual conversávamos e revelávamos os segredos mais secretos de duas melhores amigas. Muitos seres elementares se revelavam pra gente quando estávamos atentos às sutilezas do vento uivando nas folhas, do arco-íris formado na luz da chuva fina, dos galhos caídos na terra em forma abrigo pra seres minúsculos, ou do raio de sol atravessando uma fina fresta por entre folhas e teias de aranha… Deste jardim surgiam histórias que acreditávamos, e outras que inventávamos com tanto encantamento pras crianças mais novas, que chegávamos a acreditar ser real o que tínhamos acabado de inventar.

 

Durante estes sete anos vivi plenamente minha primeira infância! Muitas vezes ralei o joelho, ou perdi a unha por correr desembestada; em outras fiquem sem voz de tanto gritar ao léu num exercício de eco; em muitas outras vezes gripei, por não sentir o frio chegar no corre-corre dos piques, mesmo a pedidos da mãe que acabava desistindo de tanto insistir; peguei catapora, caxumba, rubéola, coqueluche, porque quem conseguiria deixar de visitar o amigo doente? Mas a saúde que desenvolvi nestes anos de minha infância vivida com plenitude, foi uma saúde que vai pra além da saúde física, ela abrange a saúde motora, a saúde sensória, a saúde emocional, a saúde social, a saúde vital, uma saúde que me plasmou a vontade de viver com plenitude as simplicidades da vida, que se encontram nas riquezas da natureza ao nosso redor, e nos encontros espirituais/humanos do dia a dia. É uma saúde que me permite atravessar e superar momentos de grande dor, me fazendo enxergar que há uma sabedoria cósmica até mesmo nestes momentos mais duros, como me foram a morte de minha mãe, de meu pai e de minha irmã.

 

Quando eu me mudei da Nossa Rua parecia que eu havia deixado uma terra encantada, e passei, os sete anos seguintes, alimentando o sonho de que um dia eu voltaria a morar lá, mas com a chegada da adolescência caiu a ficha de que não seria mais possível resgatar este tempo encantado, pois mesmo que eu voltasse pra Nossa Rua, eu não seria mais criança pra aproveitar das delícias da infância.

 

Mesmo assim, desde que me mudei de lá, sempre me entristeci com as infâncias que outras crianças perdiam dentro de seus apartamentos, sentadas em frente a tv, apertando botões de vídeo game, ou em horas ininterruptas de informação em escolas puxadas intelectualmente e conteudistas.

 

Um belo dia me encontrei com a pedagogia waldorf, uma pedagogia que trabalha pelo resgate, respeito e preservação da infâcia sadia e plena! E senti que havia encontrado minha missão nesta vida, através dela eu podia trabalhar para que mais e mais crianças possam ter uma verdadeira infância, rica de brincadeiras e experiências motoras, sensórias, emocionais, sociais, imaginativas, criativas… e com esta pedagogia descobri que essas experiências são a base para o desenvolvimento do pensar livre e autônomo.

 

Do encontro com a Pedagogia Waldorf descobri muitas outras coisas, e uma delas foi que não estou sozinha neste sonho e nesta missão, mas existe todo um movimento chamado Aliança pela Infância, um movimento mundial, em prol da infância plena vivida através do brincar, para que a saúde humana integral seja tecida desde sua base formadora, a infância.

 

 

*Amanda Hipólito é mãe e educadora Waldorf.